quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Críticas à crítica

Há 20 anos, comer salmão e tomate seco era privilégios de poucos endinheirados. Tidos como produtos gourmets, hoje “se popularizaram” ao ponto de encontrá-los em bufê de restaurante de comida por quilo. Salmão e tomate seco são apenas exemplos de uma longa lista de ingredientes e iguarias que globalizaram o cardápio dos brasileiros.

Neste período, não foram somente os hábitos alimentares dos brasileiros que mudaram. O jornalismo gastronômico – ou o que se convencionou assim chamá-lo – também se transformou. Pouco a pouco, surgiram novos – e caros – restaurantes dedicados à alta gastronomia e, lentamente, foi se constituindo uma casta de comensais exigentes, a ponto de alguns deles se tornarem com o passar dos anos verdadeiros connoisseurs, isto é, competentes o suficiente para emitir julgamentos sobre a arte culinária, assim como outros tantos o fazem com outras manifestações artísticas.

Até então, a única grande referência em “jornalismo gastronômico” era o Guia 4 Rodas, com seu roteiro de restaurantes e bares, estrelados ou não – desconsideremos a Claudia Cozinha, também da mesma Editora Abril, com foco em receitas e dedicado exclusivamente ao público feminino. Mas pode-se chamar de jornalismo gastronômico uma lista de estabelecimentos comerciais do Oiapoque ao Chuí? Eis a questão. Ou a primeira delas.

Se há um mercado – mesmo que à época incipiente – de alta gastronomia e pessoas que queiram saber mais sobre pratos e quem os cria e a indefectível combinação deles com vinhos, há potencial público-leitor. Com isso, começaram a chegar às bancas e mesas publicações como a Gula, Prazeres da Mesa, Menu, Alta Gastronomia, Comer e Sabor – as duas últimas já tragadas pela voracidade do mercado editorial. Jornais, como a Folha e o Estadão, dedicam aos temas do paladar páginas ou cadernos e guias semanais.

Um pouco mais tarde, juntam-se aos impressos os sites segmentados, trazendo as novidades recém-saídas dos fornos e fogões. Blogs dão seu piteco e colocam uma pitada de sal no assunto ou mesmo requentam ad nauseam aproveitando as sobras das criações alheias. Finalmente, comendo com pressa e por fora, há o Twitter, o fast food das redes sociais, que traz dicas de onde e o que alimentar-se nesta cidade que devora a todos.

O boom do segmento editorial dedicado à gastronomia deu aos jornalistas amantes da boa mesa a oportunidade de desenvolverem, aprimorarem e exercitarem seus conhecimentos num segmento que requer muito mais que ser um bom garfo e ótimo escriba. Ser jornalista gastronômico é ser um glutão que se nutre de notícias recheadas de novos pratos, preparados com ingredientes de primeira e, se possível, exóticos, criados por chefs revelação ou consagrados de restaurantes seletos e disputadíssimos. Isso lhes confere glamour, mas também a necessidade de estabelecer e manter relações um tanto quanto questionáveis do ponto de vista ético com chefs e profissionais a seu serviço, incluindo os assessores de imprensa. Vale tudo por uma pauta ou para ficar de bem com a fonte? Boa pergunta.

Mas as relações podem ser ainda mais, digamos, “complexas”. No Brasil, assim como em outros países, há jornalistas que se posicionam como críticos gastronômicos, mas apoiam ou mesmo promovem eventos com a presença de chefs que são, precisamente eles, pautas dos mesmos críticos. Em outras palavras: num incontestável conflito de interesses, mantêm negócios com os chefs. Segundo o crítico gastronômico alemão Jörg Zipprick, em entrevista a este escriba, seus coleguinhas não criticam os chefs-estrelas que caminham pelos tapetes vermelhos dos festivais, organizados por ou com a ajuda dos jornalistas. Críticos ou aduladores? É de se perguntar, então.

Um bom exemplo da renúncia ao exercício da crítica por parte de muitos jornalistas é o que acontece com os artigos sobre as criações do “mejor cocinero del mundo”, Ferran Adrià, assim apontado pela quarta vez neste ano pela revista britânica Restaurant. O chef catalão do restaurante elBulli é idolatrado por jornalistas pelas suas inovações culinárias, conhecidas sob diferentes alcunhas de gastronomia molecular, cozinha técnoemocional ou cozinha de vanguarda. Contestá-lo é tarefa para poucos.

Um deles é o crítico gastronômico do jornal barcelonês El Periódico, Miguel Sen. Ele não se conforma que Adrià tenha se convertido, e o tenham convertido, na unanimidade que é e que sua cozinha seja hoje a referência mundial da culinária espanhola – ou simplesmente “a” referência mundial do que é a alta gastronomia atualmente. Para Sen, autor do livro Luzes e sombras no reinado de Ferran Adrià, questioná-lo, assim como a sua cozinha, beira à apostasia.

“Qualquer crítica, inclusive a mais respeitosa, é entendida como blasfêmia que atenta contra a pátria e seu cozinheiro-estrela”, afirma, em estrevista a este jornalista. Zipprick – o jornalista alemão que escreveu No quiero volver al restaurante!, com críticas à Adrià ao uso de substâncias químicas, como colorantes, aromatizantes, conservantes e potencializadores de sabor, algumas delas, dizem especialistas, com o risco de danos à saúde –, vai além. Para ele, há uma espécie de omertà entre críticos e chefs.

Sen é um dos que evita referir-se aos críticos, como críticos. “Muitos deles estão ligados a empresas de publicidade ou a eventos gastronômicos. Outros dependem das feiras que organizam, em muitos casos com o apoio dos jornais para os quais escrevem. Nestas condições, é impossível que não se cumpra a lei de omertà”, vaticina. Sen não fala a esmo. O proprietário de uma assessoria de imprensa, que tem como cliente a Relais & Châteaux (rede formada por 480 hoteis de alto luxo e restaurantes gourmet em 56 países), por exemplo, é também crítico gastronômico.

Segundo Zipprick, muitos dos críticos pouco põem os pés na redação dos jornais ou revistas onde trabalham, preferindo vagar de evento em evento gastronômico para seguir “seus chefs”. “Antes, os críticos costumavam ser críticos. Agora, eles só estão lá para aplaudi-los”, diz, contrariado. Última pergunta, e fecha-se o pano: A crítica gastronômica é, então, confiável? Na dúvida, coma no seu boteco preferido.

Milton Rizzato é jornalista formado pela Unesp-Bauru, com rápida passagem pelo curso de Letras-Italiano da FFLCH-USP, e mestrando em História e Cultura da Alimentação pela Universidade de Barcelona (Catalunha), feito em parceria com as Universidades de Bolonha (Itália) e de Tours (França). Em uma das pausas em sua trajetória, trilhou pelo curso de Cozinheiro do Senac-Campos do Jordão e, posteriormente, foi professor e responsável pelo Garde Manger, área da cozinha onde se preparam as entradas e pratos fora de hora. Torce pelo Palmeiras, mas não tá nem aí para o campeonato. Gosta de alta gastronomia, mas não de suas frescuras. Assim como Tom Jobim, acha que se há perfeição, está na simplicidade. “Nada melhor que arroz, feijão, ovo e salada, da minha mãe, claro”, sentencia.

Um comentário:

  1. Muito bom!

    Parabéns pelo texto, Milton.

    Mas vamos lá que isso vale para outras áreas. O que tem de crítico de música que é amigo de músico, promove festa... mas isso desde o Nelson Motta...

    Já ouvi gente dizer, e acho isso uma bobagem sem tamanho, que quem não sabe fazer não deve criticar. Um grupo de amigos, jornalistas e músicos, queriam me convencer que quem não toca nenhum instrumento não pode falar de música. Então o Ximbinha e o Frank Aguiar deviam escrever na Veja sobre os lançamentos de música clássica... afinal eles tocam...

    Mas até aí ainda é questão de opinião e, sim, certo conhecimento técnico sempre ajuda e evita fazer besteira.

    O que não dá é para misturar interesse econômico com função de jornalista. Pode parecer teoria da conspiração, mas já ouvi esta história de mais de uma fonte. Veja quem são alguns dos principais produtores de bailes funk no Rio de Janeiro e quais veículos elogiam esse "estilo musical"...

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