Ter aulas de Antropologia da Alimentação com Jesús Contreras na Universidade de Barcelona foi um privilégio. Nos deliciávamos com seu jeito histriônico de ser e bem-humorado de viver a vida. Em sua aparente desorganização, ele pode passar por relapso, mas é dedicadíssimo e ama o que faz. É um devoto do seu trabalho. Por isso mesmo, me lembro que nos contou que ao ir à universidade costuma dizer que vai "à missa".
Como ex-católico, assim como eu – e isso não significa que esteja em vias de raspar meu cabelo, vestir tecidos laranja e vender incenso pelas ruas da cidade –, talvez para Contreras a religião não mais é o propalado meio de religare com o deus-trino-e-uno, mas uma conexão a mais que temos com o passado que teima em fazer-se presente.
Após termos aderido a uma fé quando ainda babávamos ao invés de falar, participado de missas quando mal pronunciávamos nossos nomes, ido às aulas de catecismo, feito a primeira comunhão, nos confessado de pecados inexistentes, sermos crismados, nos integrados mais crescidinhos à comunidade de jovens, seguido em frente frequentando a dita comunidade, nos confinarmos em retiros espirituais, entre otras cositas más, parece que não temos nenhuma outra escolha senão a de nos conformarmos com o fato de que uma vez católicos, somos para sempre católicos, tal qual a Igreja nos faz supor, mantendo-nos como se fóssemos uma "reserva de mercado". Isso é um determinismo atroz. Não somos e ponto.
Por razões várias, devo confessar que algumas vezes sinto um pouco de inveja de pessoas que não tiveram o longo currículo que tive como fiel. Afinal, elas não foram maculadas com o sangue que escorre pelas páginas do Deuteronômio e de tantos outros livros que integram a Bíblia e que desconhecem o pecado original e tantos outros imputados à humanidade. Isso as torna, aparentemente, menos suscetíveis à culpabilidade e à danação.
Mas também vejo com certa tristeza que relatos bíblicos mencionados por professores, como os da estátua de sal a que se converteu a mulher de Ló enquanto fugia da destruição de Sodoma e Gomorra ou dos banquetes salomônicos, havia colegas que os ignoravam solenemente e relativizavam a sua importância num mestrado de História e Cultura da Alimentação, talvez por falta da vivência que tive (que se constitui, sob certa forma, num bem para eles), por falta de oportunidade (e sempre há tempo de se aprender mais e mais) ou por simples falta de interesse (este, um mal constituído na minha opinião).
O fato é que muitas das pessoas que conheço, amigos ou não, associam cultura bíblica à falta de cultura ou o menosprezo a uma educação tida como “clássica”. Para elas, qualquer interesse ao tema religião limita ou mesmo prejudica a visão do “todo”, como se o todo fosse um novo tipo de deus em sua omnisciencia. Já para mim, a cultura – melhor seria “culturas” – das religiões faz parte deste pretenso "todo", incluindo a alimentação.
Crer na relevância de ter conhecimentos bíblicos não significa que compactuo com as "preocupações" do papa – segundo Bento XVI, a identidade e cultura cristãs são inalienáveis à Europa, um papo que esconde interesses escusos, como o antilaicismo e anti-islamismo, ainda mais em época de fundamentalismo religioso de todos os matizes, que fomentam o ódio e intolerância. Mas reconheço e propago, sim, que a Bíblia, como coleção de livros, é uma rica e vastíssima contribuição à cultura pessoal.
Nela, há de tudo: lendas, aventuras, dramas, suspense, erotismo, incestos, perversões, guerras, homicídios, fatricídios, filiocídios, futurismos etc. Não há sequer um leitor que não encontrará em suas páginas algo interessante, desde que se tenha em consideração uma análise contextualizada a partir de determinados pontos de vista, como o literário, histórico, antropológico, arqueológico etc.
Não é preciso ser cristão para lê-la e tampouco ir à missa ou a um culto, mas viver em uma sociedade de herança cristã – visível e invisível –, desconhecendo-a ou querendo ignorá-la, é uma maneira tola de relegar ao fundo de uma gaveta um dos testamentos mais importantes que temos para compreender a dita civilização ocidental. Aliás, o que chamamos de civilização ocidental é tão irremediavelmente ligada à religião que é sinônimo de outro termo, a civilização cristã – pobre Cristo!
Com suas crenças e crendices, toda religião nos explica algo, para o bem ou para o mal. Podemos não nos considerar mais católicos – ou cristãos, num senso mais amplo –, mas isso não invalida a importância dos temas religiosos. Laicos que somos e/ou nos julgamos, não nos permitamos desconectar com o conhecimento, seja ele de qualquer fonte. Crentes ou não, é sempre tempo de religare com a busca da sabedoria. E não é preciso crer para saber. Basta querer.
Milton Rizzato é jornalista e não gosta de maçã. A foto deste post foi retirada um pouco antes de sua expulsão do Éden
quinta-feira, 20 de maio de 2010
É sempre tempo de religare
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