quinta-feira, 14 de julho de 2011

O Insustentável Peso do Ser

Muito se fala de algo que só citarei uma vez nesse texto, para não cair na mesma banalidade que pretendo criticar: sustentabilidade (e tudo que é ‘sustentável’, por consequência). Fala-se demais! E ainda que entendamos o conceito e apliquemos algumas das ideias encapsuladas no termo, nessa muleta apoia-se uma infinidade de programas, projetos e prêmios que forçam a barra para se adequar à tendência. E, por enquanto, falamos apenas do microcosmo corporativo, pois se estendermos o assunto ao plano pessoal, familiar, cotidiano, o emprego desse pensamento é ainda mais nebuloso e fugaz.

Minha sensação é que se tem falado pouco do oposto – sobre tudo o que não se pode mais sustentar em uma sociedade que clama caminhar no sentido da conscientização global. E tudo começa pela relação que estabelecemos uns com os outros. É irônico que em cidades como São Paulo, berço de complexos planos de responsabilidade corporativa e afins, as pessoas mal se olhem ou troquem uma palavra sequer em espaços públicos. É claro que não se pode generalizar, mas o que acontece em grande escala é um processo de cultivo do temor e desprezo pelo próximo, nas grosserias trocadas no trânsito, nos gritos em balcões das lojas, nos suspiros tensos nas filas dos bancos. A intolerância é insustentável. O ódio também.

Insustentável é o esgotamento físico e mental a que são submetidos trabalhadores do mundo todo para o farto sustento de um punhado de ricos proprietários, que figuram, cheios de si e sorridentes, na capa da Forbes ou veículo de exaltação do dinheiro que o valha. São vitoriosos, estão no topo da cadeia, a cereja do bolo de um mecanismo que depende da discriminação e da exclusão para se manter. Pior: eles aparecem como responsáveis por empreender, em seus megalomaníacos impérios, aquela tal palavrinha inominável. A empresa mais @(#*#()!#*& do mundo! Será mesmo? A ganância não tem lugar em um "mundo melhor".

Assim como não há jeito de suportar todo esse luxo, materializado em carros, aparelhos eletrônicos de grife e tantas outras tranqueiras caras para o bolso e o planeta, que alimentam a indústria do fetiche. É fácil desejar o bem e abundância para todos quando não se quer abrir mão de absolutamente nada, nenhum supérfluo, para gerar menos lixo, menos cobiça, menos produtos que, em vez de garantir conforto a todos, são feitos para alguns à custa do árduo trabalho de muitos, que nem vão usufruir disso. Para que vivamos em um mundo mais igual, não é possível que todos desfrutem ao mesmo tempo de artigos da mais alta e vazia tecnologia, ou que todo mundo viva em favelas: a gente precisa se encontrar em algum lugar no meio do caminho, e será só quando abdicarmos do que não é necessário e não se sustenta.

É cômodo aguardar que projetos de ONGs e corporações buscando lucros astronômicos deem jeito em problemas seculares, sem que precisemos mover uma palha, mudar uma vírgula em nossa maneira de conduzir a vida simples, a existência individual comum e subestimada. Sistematizar a assistência e o cuidado aos que carecem de tudo, apenas como mais um trabalho delegado a escravoides em cubículos, que entra no automático e é executado e cobrado de forma robótica, não vai tratar a raiz disso, que é o desinteresse, a falta de empatia pelas próprias causas que queremos abordar, em um louco empenho para sustentar o que não se sustenta – a indiferença.

Assim acontece também com o que é público e depende de complexos jogos políticos e decisões pouquíssimo democráticas, apesar do que se fala, para funcionar. O discurso da democracia, portanto, já está perdendo suas estribeiras. Está à mercê de interesses bastante insustentáveis a maneira como se legisla a respeito de lugares para morar, o que plantar para comer, o que comer, e formas de ir e vir – discute-se tudo menos os interesses dos mais interessados. Como sustentar, por exemplo, essa sanha por ir cada vez mais longe com automóveis, trens, aviões, foguetes, se não passeamos a pé por nosso bairro, ou se não temos maneira fácil de chegar ao trabalho, à escola, ao hospital? A dependência dessa politicagem, a falta de envolvimento com os assuntos de nossa própria comunidade, e a falta de luta por alguns direitos básicos por parte da classe mais munida de conhecimento também são difíceis de sustentar.

Não sabemos até quando essa tremenda massa insustentável será contida, e se é mais válido gastar energia para evitar um colapso ou simplesmente abrir espaço para que ele venha: quem sabe não acontecem mudanças boas. O fato é que uma revolução profunda em nosso íntimo já se mostra muito mais do que necessária, é urgente! Se não temos força para mudar a nós mesmos, quem dirá para virar o mundo de cabeça para baixo por meio do neologismo mais usado e menos usado da história. Para termos uma percepção mais cristalina de quem somos e o que queremos, temos que identificar e admitir os erros e seguir em frente, e parar de tentar sustentar, de forma orgulhosa, o que há de pior e mais mesquinho em nós.

Meu querido avô, Octávio Araújo, hoje com 85 anos, gozava de certa fama nos anos 70/80, quando sua pintura estava em alta. A TV Cultura foi lá em casa falar com ele, em 83, pois era um dos personagens de um pequeno documentário sobre pintores. A última cena, em que apareço com mais ou menos 1 ano de idade, sempre me causou impressões diferentes a cada vez que assistia à fita, ao longo da vida. O vô, com voz de locutor, narra o meu caminho até seus braços, a passos desengonçados: "Lá vem o Allan, está chegando, está chegando! Veio anunciar uma nova era! Nós, as crianças, seremos os donos do futuro!" – é assim que me lembro da fala, mais ou menos, e hoje eu a acho mais profética e frustrante do que nunca.

O que se sustenta é o que se cultiva com amor. E só. Somos donos do futuro, sim, já o somos, e o futuro já chegou, está aqui em nossas mãos, como meu avô bem previu. Mas essa geração XYZ (pouco importam os rótulos) ainda guarda a noção de que as coisas devem ser controladas, estar sob o poder de alguém, e não se trata disso. É uma visão atrasada, um ato falho de nossos pais e meu avô, que exprime o desejo de posse sobre tudo, em uma sociedade que se orienta pela hierarquia – uns que podem mais e ficam com mais mandando nos outros, que apenas repartem as migalhas. Não basta sermos donos do futuro, do passado, do presente, do mundo: temos de amá-lo. E temos que fazê-lo juntos! Em vez de possuidores do futuro, com o perdão de corrigir meu avozinho, prefiro que sejamos amigos do presente.

Allan Araújo Zaarour é jornalista, assessor de imprensa, marido apaixonado da Thaís, blogueiro, musicompositor em diferentes bandas e pede desculpas por não proporcionar uma leitura lá muito rápida para o dinamismo dos tempos modernos.

5 comentários:

  1. Sem palavras para comentar a qualidade do texto. Excelente! Sem dúvida, uma ótima reflexão a fazermos. Parabéns, Allan, por nos presentar com mais um texto incrível. Beijos

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  2. Allan, ler o seu texto foi como desengasgar algo que me incomodava na garganta. Há dias venho pensando nisso e esse maravilhoso texto sintetizou todos os meus pensamentos sobre o assunto.
    Obrigada!

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  3. "Lá vem o Allan, está chegando, está chegando!(...)"

    Chegou! Ainda bem!

    Quem precisa de dinamismo, quando se tem uma reflexão assim, que merece ser digerida aos poucos?

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  4. Parabéns, Allan! Conseguiu deixar uma jornalista sem palavras. Excelente artigo.

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  5. excelente texto coincidentemente publicado no dia em q se comemora a queda da Bastilha. Li duas vezes bem lidas e uma em voz alta para ter certeza de q o recado tinha sido bem dado. Disse mto e disse mto bem. Foi um desengasgar de tanta coisa q ja nao se sustenta por aqui tb. Muito obrigada por isso. Bjos da Mel

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